sábado, 6 de agosto de 2011

Um copo d’água eu não lhe dou..."

"Um copo d’água eu não lhe dou..."

O versinho acima é de uma cantiga de roda, que conta a história de Valdomira, a mais linda de três princesas irmãs. O pai trancou-a num quarto e proibiu de dar lhe água. Ela sobe numa torre alta, vê uma das irmãs e lhe pede um copo d’água. A irmã lhe nega, pois seus braços poderão ser cortados pelo pai; Valdomira sai chorando, chorando lágrimas de sangue. Ela sobe numa torre alta, vê a outra irmã e lhe pede um copo d’água. A irmã lhe nega, pois suas pernas poderão ser cortadas pelo pai; Valdomira sai chorando, chorando lágrimas de sangue. Ela sobe numa torre alta, vê a mãe e lhe pede um copo d’água. A mãe lhe nega, pois seu pescoço poderá ser cortado pelo marido; Valdomira sai chorando, chorando lágrimas de sangue. Ela sobe numa torre alta, vê o pai e lhe pede um copo d’água. O pai diz que lhe dará antes, porém chamará três cavalheiros, o primeiro que chegar ganhará a namorada. Os três cavalheiros chegam juntos. Encontram Valdomira morta, foi jurado por três anjinhos e Jesus lhe abre a porta. Triste sina de Valdomira...

Minha mãe dizia que um dos maiores pecado, quase que igual ao pecado original, é ridicar água. Ridicar... pensei até que não existia essa palavra. Existe, é um verbo, antigo pra dedeú, significa egoísmo, mesquinharia.



Uma metáfora, que gosto de imaginar é a de uma "tempestade em copo d’água". A imagem de ondas gigantes, arrebentando nas bordas do copo me faz feliz. Não concordo com as preconizações e interpretações usuais que classificam uma atitude, um pouco mais impetuosa, e segundo experts geralmente por uma "coisa" sem importância, pequena, insignificativa de tempestade em copo d’água. Sem controle? Imagina... controle total de seu frágil barquinho que quase sucumbe no maremoto do mar Vermelho, como as lágrimas de sangue de Valdomira.



Bom de copo. É isso mesmo que pretendemos demonstrar que somos, hoje. Calma, não se trata de uma elegia ao alcoolismo. O copo é só o tema. Dito e bendito isso, explicadíssimo, a memória me transporta logo para uma amiga, comadre, que em noitadas passadas, nos tempos em que a gente entornava mesmo pra valer, chegava a uma altura da noite em que, invariavelmente, lá vinha a indagação dela: "Cadê o meu copo". E o coitado do utensílio ancestral que faz parte das nossas vidas estava bem ali, ao lado dela, comportadinho. Quieto, não importa se vazio ou cheio. Um copo, afinal, é uma coisa tímida. Mas, esbarra nele inadvertida ou bruscamente. Ele reage e faz barulho.


Um corpo que cai... Não, um copo que cai, para um músico contemporâneo, pode até funcionar como inspiração. O vidro que se espatifa tem cheiro, sabor e som de participação especial. É a trilha que trinca. A nota musical indefinível. É solfejo alucinado, louco pra aparecer. Uma espécie de brinde ao acaso.

Copos de plástico ou de alumínio não servem pro nosso post. Não tilintam, não brindam com o rigor da onomatopeia e são imprestáveis para o significado... ‘tin tin’. Enche meu copo que eu tô de saco cheio e preciso do copo também assim. Soca cerveja nele aí, mano. Tô com a boca seca e preciso molhar a palavra.


Enche meu copo, ou o seu e depois faz favor. Vai logo lembrando da música do Gilberto Gil, Copo Vazio. "É sempre bom lembrar / que um copo vazio / está cheio de ar". Letra estranha, com rima esquisita. Eu num tô legal, não aguento mais birita. Mas a poesia do cancioneiro popular combina com licenciosidade poética, com guardanapo e com um copo d’água bem gelado.


Copo é copo. Coisa que cabe no armário da cozinha, na cristaleira e que gosta de descansar no aparador. "Os cacos colados da vida formam um estranho copo / sem uso, ele nos espia do aparador". Fui eu mesmo quem escreveu isso, viu gente. A poesia do Drummond é diferente desses meus versos que acabo de inventar. Em vez de copo, ele usou xícara. Ora, xícara tem asa e copo não tem. Então, é diferente.


Enquanto o tempo passa a gente usa cada vez mais a palavra antigamente era comum nas mesinhas de cabeceira que ficavam ao lado da cama dos mais velhos visualizar um copo d’água com uma dentadura dentro.

 Uma imagem que me persegue faz tempo e que já fiz um poema remetendo a ela e até já a protagonizei aqui no Tyrannus é a de um copo no bolso. Coisa de anatomizar esse objeto que faz parte do meu desejo. Pronto. Por causa desse tema simples e cotidiano, aceitamos a acusação de termos cometido esse crime doloso. Provocar uma tempestade num copo d’água.

Jobim deixa a defesa e Celso Amorim assume a pasta. O "copo encheu" diz lider do governo, (Manchete JB)


Um comentário:

  1. voltando à letra do copo, do Gilberto Gil, eu acho de grande beleza: fala sobre o cheio e o vazio, que no fundo são a mesma coisa. o ar busca ocupar o lugar do vinho, que por sua vez busca ocupar o lugar da dor, sendo esta a metade da verdadeira natureza interior. O vazio e o cheio se complementam, apesar de nós querermos viver um sem experimentar o outro. Queremos prazer sem dor, alegria sem tristeza, vida sem morte. Num tá legal faz parte.
    Quanto ao Jobim, foi tarde, que bom!!!

    Gosto doTyranus. Leio sempre. Parabéns

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